As fases da relação contratual e os contratos eletrônicos

Mais um produto da série “Posts longos, tediosos e jurídicos que nunca vão ser lidos”…

Os contratos eletrônicos são contratos atípicos¹, pois o modo como devem ser executados não é previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, a atipicidade não impede que os contratos dessa espécie passem pelas três fases da relação contratual e obedeçam aos princípios gerais dos contratos. A possibilidade de se criar contratos atípicos é prevista pelo art. 425 do Código Civil – a parte final do artigo faz a ressalva de que as normas gerais do Código devem ser seguidas também nesses contratos.

As três fases da relação contratual

No Direito Civil, a relação contratual é uma relação complexa que envolve três fases – a fase pré-contratual, a fase contratual e a fase pós-contratual (o nome das fases é meio óbvio demais… mais óbvio que isso só se elas se chamassem fase 1, fase 2 e fase 3 :P). Ao longo de todo o processo, vigoram princípios gerais de direito que vinculam as partes contratantes. O principal deles é a boa fé objetiva, um princípio que obriga aos contratantes cumprirem certos deveres anexos ao contrato, como o dever de informar, o dever de lealdade e o dever de sigilo. A boa fé objetiva (espécie de presunção geral de que o contrato será cumprido, prevista no artigo 422 do Código Civil) vigora durante as três fases da relação contratual.

Assim, a primeira fase é a fase pré-contratual. Nela, ocorrem as tratativas e a formação do vínculo contratual (a partir da convergência entre proposta e aceitação da oferta). Nas tratativas, ocorrem negociações preliminares a partir das quais os futuros contratantes analisam perspectivas de mercado e outras informações relevantes para formar seu convencimento de que é necessário contratar. Essa fase costuma ocorrer em contratos civis e mercantis, principalmente em contratos entre grandes corporações. Nas relações de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor, geralmente não há tratativas – pois predominam contratos de adesão (nos quais o fornecedor decide os detalhes e ao consumidor resta apenas a possibilidade de aderir ou não ao contrato, sem poder modificar seus termos).

A fase seguinte é a fase contratual propriamente dita. Nesta fase, há a conclusão do contrato (em juridiquês arcaico, concluir algo significa deixar pronto para produzir efeitos – e não necessariamente extinguir a coisa), seguida da execução. A execução do contrato consiste nos passos necessários para que ele produza seus efeitos, como entregar o dinheiro e receber o produto em troca numa relação padrão de compra e venda.

Por fim, há a fase pós-contratual, na qual ocorre a extinção do contrato (algo como conclusão no sentido padrão do dicionário). A extinção do contrato é considerada uma fase em si porque as obrigações inerentes ao contrato não se encerram com o fim do contrato. Há certos deveres que permanecem mesmo após o término da relação contratual, que decorrem da boa fé objetiva. Como exemplo, há o caso dos vícios redibitórios (palavra horrível que significa algo como os probleminhas que o produto adquirido trazia escondido e que só foram percebidos após alguns dias de uso – a matéria é regulada pelo artigo 441 do Código Civil), que obriga o fornecedor de um produto a efetuar a troca ou ressarcir o comprador.

Contratos eletrônicos

Uma relação contratual processada por meios eletrônicos (aqui, o exemplo se limitará às compras realizadas pela Internet, mais especificamente as feitas a partir da interface da Web, e mais especificamente às vendas realizadas por uma empresa a um comprador), embora não haja uma legislação específica (o contrato é atípico), também deve passar pelas três fases. Assim ocorre nas compras efetuadas em sites de vendas, como Submarino, Americanas e Shoptime (o Mercado Livre é um caso à parte porque as compras são efetuadas diretamente entre indivíduos, sendo que o site funciona apenas como um meio que possibilita o contato entre ávidos compradores em potencial e vendedores que nem sempre agem de boa fé – neste caso, varia conforme as intenções do vendedor, que pode perfeitamente estar agindo de má fé, embora isso seja ilegal – há a necessidade urgente de se fechar este parêntese antes que ele fique maior que o próprio parágrafo).

Nem sempre haverá uma fase pré-contratual nas compras pela Internet, pois, por se tratar de relação de consumo, os contratos costumam ser de adesão.

Os contratos eletrônicos costumam ser de execução diferida, ou seja, a execução se prolonga no tempo. Assim, o comprador paga no cartão, mas só vai receber o produto em sua casa alguns dias depois. Nos contratos de execução diferida (assim como nos de execução continuada, que é o que ocorre nas compras a prestação), pode haver a resolução (extinção, desistência, renegociação da dívida) do contrato por onerosidade excessiva. A onerosidade excessiva ocorre quando a prestação para uma das partes se torna muito onerosa (palavra bizarra para pesada, cara, em termos financeiros) em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis (art. 478 do Código Civil).

Algo peculiar ocorre quando a compra é feita de um país diferente, e isso pode gerar efeitos principalmente na fase pós-contratual. De acordo com o §2° do artigo 9° da Lei de Introdução ao Código Civil (nesse caso, o artigo existe realmente; mas note que eu poderia ter inventado uma lei qualquer, um artigo qualquer, e mesmo assim citar essa lei teria criado um efeito de verdade com relação ao que vou dizer a seguir – o juridiquês é divertido :P), “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. O proponente é aquele que emite a proposta (fase pré-contratual). Ora, no caso da página na Internet de uma empresa que vende produtos, o lugar que reside o proponente é o local onde essa empresa está constituída. Assim, se um brasileiro decidir comprar produtos de um site estrangeiro (como da Amazon.com, americana), a lei que regulará a relação será a lei do país do site estrangeiro. Se o contrato for mercantil ou civil, tanto a lei material quanto a processual deverão ser a do país estrangeiro. Se a relação for de consumo, tem-se a possibilidade de se aplicar a legislação material estrangeira mas com rito processual brasileiro. De qualquer modo, o efeito prático dessa regra é o de que, caso haja descumprimento do contrato (por exemplo, há pagamento mas o produto não chega, ou o produto chega, mas com defeito – vulgo “vício redibitório”), o juízo competente para julgar a ação estará situado fora do país, mesmo que a pessoa, na prática, nem sequer tenha precisado sair de casa para efetuar a compra.

À guisa de² uma conclusão³

Dado o exposto, percebe-se o quanto a relação contratual eletrônica é complexa, na medida em que, embora não haja leis específicas, ela deve obedecer aos procedimentos gerais comuns a todos os outros contratos. Também se percebe o quanto ainda não consegui aprender a matéria da prova de Civil III de terça-feira, porque tenho a leve suspeita de que quase tudo o que disse acima esteja errado. O que me reconforta é o fato de que ninguém lê minhas postagens jurídicas longas do começo ao fim 🙂

Notas
¹ No artigo 49 do CDC há uma rápida menção aos contratos à distância (mas como o Código de Defesa do Consumidor é de 1990, o artigo se refere à venda de porta em porta ou por telefone, e não a contratos mediados por computador).
² Ao escrever essas palavras, pergunto cá com meus botões: existe algo mais horrendo e bizarro do que isso para se utilizar como encerramento de uma postagem de blog?
³ Sim, conclusão aqui é usada no sentido banal do dia-a-dia (e não no senti
do jurídico-arcaico-rebuscado de algumas linhas acima).

Links relacionados
Código Civil
Código de Defesa do Consumidor

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