Casamento putativo

Uma das situações da vida regulada pelo Direito é o casamento putativo. Não, não se trata de uma espécie de orgia juridicamente protegida. Putativo (um termo jurídico absurdo por si só) aqui se refere a algo que parece ser, mas não é. Conforme o dicionário Michaelis,

putativo adj Diz-se de tudo aquilo que tem aparência de legal ou se supõe verdadeiro, embora na realidade não o seja.

E não é só o casamento que pode ser putativo. Há ainda o crime putativo (quando a pessoa acha que cometeu um crime, mas, na verdade, a conduta praticada não é considerada crime – tipo o que pode acontecer quando alguém comete adultério) e o credor putativo (quando tu juras que estás pagando uma dívida para a pessoa certa, quando não está), por exemplo.
Mas, voltando ao casamento putativo, você pode estar se perguntando… como é possível alguém parecer casado, quando na verdade não está? O que acontece é o seguinte: o Código Civil impõe uma série de restrições para o casamento. Como exemplo, não se pode casar com parentes colaterais e afins em primeiro grau, o que em termos práticos significa que ninguém pode se casar com o próprio pai ou mãe (não que alguém vá ser insano de fazer isso, mas pense, por exemplo, no caso de alguém que possua um filho adotivo…), nem com a (ex-)sogra ou o (ex-)sogro (considerados “pai” e “mãe” por afinidade em primeiro grau, ainda que o casamento anterior tenha sido dissolvido). Na legislação brasileira também não é possível alguém casar com duas pessoas ao mesmo tempo (a bigamia é proibida).
Mas o que acontece se, mesmo com essas restrições, alguém, sem querer, acabar casando com alguém que já é casado, ou com a própria mãe sem saber que é mãe (!)? Bom, para isso, o Código Civil prevê a figura do casamento putativo. O casamento putativo é o casamento nulo, mas realizado de boa fé por pelo menos um dos cônjuges. Para que ele ocorra, pelo menos um dos cônjuges não pode saber que há uma situação de nulidade que impediria que os dois casassem. (Ou, nas palavras de Caio Mário [atenção: altos níveis de juridiquês nas frases a seguir], o casamento putativo “é o eivado de vício que o inquina de nulidade, mas que produz os efeitos de válido, em atenção à boa fé de ambos ou de um dos contraentes. É aquele consórcio na realidade atingido de nulidade, mas que os dois cônjuges, ou um deles, acreditam válido ao contraí-lo”.) Daí a conseqüência prática é que o Direito considera que houve, sim, casamento, pelo menos até o momento da descoberta do motivo que tornaria o casamento nulo. As mesmas regras também valem para o casamento anulável.
Quer um exemplo prático? Imagine um milionário salafrário a la novela das oito que decida usar uma identidade falsa (qualquer semelhança com o que efetivamente acontece na ficção é mera coincidencia) para casar com uma mocinha pobre e indefesa. Ela realmente acredita que ele seja quem diz que é, e os documentos comprovam que seja. Os dois casam, e, algum tempo depois, a mocinha descobre que o marido tem na verdade outro nome, outra família, outra esposa e outros filhos. Ninguém pode estar casado duas vezes, então estamos diante de um casamento putativo, ao menos sob o ponto de vista da menina, que não sabia de nada. Mas não é preciso ir muito longe. Mesmo que não houvesse mentira com relação à identidade, se, após o casamento, a mocinha que acreditava que o rapaz tinha rios de dinheiro descobrisse que ele não tem nem onde cair morto, isso já bastaria para anular o casamento. Ou ao menos é o que dá para deduzir da lei. De acordo com o Código Civil:

Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;

A lei prevê outras hipóteses igualmente divertidas interessantes para anulação do casamento. Quem quiser saber mais, pode conferir diretamente lá no Código Civil.

Veja mais termos jurídicos absurdos.

Este post faz parte da “Blogagem Inédita”.

7 thoughts on “Casamento putativo

  1. Olá,
    acabei de me formar em direito pela USP e pretendo seguir carreira na área acadêmica.
    Por isso, para praticar e, quem sabe, ajudar quem tem dúvidas, criei um blog sobre processo penal, o qual pretendo atualizar sempre com matérias, doutrinas, notícias e, principalmente, opiniões.
    Se você pudesse dar uma passada lá pra checar o conteúdo, e se gostar colocar um link pra minha página, seria um prazer botar um link da sua página no meu blog.
    Link: http://oprocessopenal.blogspot.com/
    Abraços,
    Pedro

  2. Já pensou descobrir que seu casamento é putativo depois de ter gasto a maior grana com cerimônia e festa? Hahahaha…
    Adorei o post sobre jornalismo participativo. Devo dizer que meus colegas jornalistas me parecem ter medo de mais do que eu considero uma colaboração à classe.
    Abraço!

  3. se o salafrário a la novela das oito continuar milionário, caso o casamento putativo tenha sido, tipo, em comunhão de bens, a mocinha pobre e indefesa pode ficar com meia mansão, metade dos carros importados, um dos dois iates e algumas das jóias da primeira esposa?
    ou o casamento simplesmente não existiu, até mais e boa sorte mocinha que continua pobre e indefesa.

  4. Pedro: boa sorte com o novo blog 🙂
    Cíntia: obrigada pela visita. Muito legal a idéia do seu blog! Descobrir que um casamento é putativo depois de gastar horrores com a cerimônia seria algo nada saudável :PP
    Fred: e o legal é que a gente pratica atos putativos o tempo todo sem querer :PPP
    w1zard: o casamento putativo tem existência para o que não sabia do motivo da anulação ou impedimento – e enquanto ignorava a circunstância. No caso, o salafrário a la novela das oito teria que dividir tudo com a mocinha, que não sabia de nada 😛

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