Insônia

Bateu a porta. O estrondo ecoou no corredor. Várias luzes de apartamentos vizinhos, acima, abaixo e ao lado, acordaram-se. Aquele silêncio mortificante da noite fria de agosto era interrompido por um estrepitante ruído. De súbito, o medo tomava conta de todos aqueles que há pouco estavam dormindo. O que teria acontecido?

Enquanto isso, não muito longe dali, ele já estava entrando em seu carro, na garagem do subsolo do prédio, quando se lembrou de que deixara o aquecedor ligado. “Droga.”

Desfez todo o caminho percorrido. Voltou ao apartamento. O crepitar da chave, num silêncio engasgante de 3h da madrugada, pôde ser ouvido dois apartamentos acima. A criança, que já não conseguia dormir desde o estrondo, vai então para o quarto ao lado, para a cama de seus pais, e por pouco não os flagra na concepção de mais um irmãozinho.

Enquanto isso, ele apaga o aquecedor. Verifica outros dispositivos eletrônicos, fogão, computador, televisão. Tudo devidamente desplugado. A viagem seria longa. Tudo deveria ficar em seu devido lugar.

Desta vez, não bateu a porta: fechou-a delicadamente. Percebera passos em um apartamento vizinho. Talvez morasse perto de sonâmbulos lunáticos e psicóticos. Talvez uma mãe estivesse a amamentar o seu filho. Talvez estivesse ouvindo coisas demais.

Retornou ao carro. Ficou algum tempo sem fazer nada. Sem dizer nada. Sem pensar em nada. Quando estivera prestes a esquecer porque estava ali, um medo súbito tomou-se-lhe conta. Aquela garagem escura e vazia, fria e cavernosa, assustara-o, como nunca antes o tinha feito. E antes que aquele sentimento pudesse lhe fazer desistir de seus planos, ligou o carro e acelerou com tudo. Tinha de sair dali o mais rápido possível!

Em poucos instantes, ganhou a rua. Tomou o cuidado de sair pelo portão da garagem cuja câmara de segurança estivesse estragada. Não queria correr o risco de ser reconhecido em seu carro. Principalmente depois do papel que seu carro desempenharia naquela noite.

Com um mapa em mãos, tratou de traçar um trajeto que não percorresse pedágios e câmeras de segurança. Ia ser difícil chegar aonde queria sem ser reconhecido. Era preciso inovar: parques e praças poderiam servir de atalhos engenhosos. Ainda bem que ninguém circulava pelas ruas da cidade em madrugadas frias de agosto. Estavam todos ocupados fritando seus miolos diante de lareiras, aquecedores, estufas, cobertores elétricos, calefação central. Poucos sofriam desse distúrbio incontrolável do sono chamado insônia.

Tomou tanto cuidado para não ter de parar em sinais vermelhos, que quase se esquecera de dobrar na esquina certa. E então viu a luz indicativa de que era aquele o lugar que planejava chegar há dias. Estava escuro o suficiente. Ninguém iria perceber o “crime” que cometeria.

Entrou pela entradinha da esquerda. Olhava insistentemente para os lados, de modo a certificar-se de que não havia ninguém por perto. Qualquer deslize poderia ser fatal. Reduziu a velocidade. Baixou os faróis. Sentiu que alguém se aproximava, mas logo percebeu que se tratava de um carro que passava velozmente pela avenida ao lado.

Quando estava no ponto final do trajeto, sorriu aliviado. A pior parte já passara. Agora era só questão de executar o plano, esconder o corpo, e voltar para casa. Não sem antes, é claro, tratar de apagar todas as evidências que permanecessem por seu carro. Era preciso tomar muito cuidado a partir de agora. Cuidado redobrado.

Parou o carro. Desligou o motor. A seu lado, uma janela de ferro deslizava lentamente. Tinha pouco tempo para desistir. Será que valeria a pena levar o plano adiante?

E então, uma voz quente e suave dirigiu-se a ele: “Faça seu pedido”.
Não resistiu: comprou seu McLanche Feliz com a Hello Kitty, e voltou feliz para casa.

Postado originalmente em 31 de agosto de 2005.

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