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O Judiciário brasileiro ainda não entendeu a internet

Em 2008, escrevi por aqui que o Judiciário brasileiro não entendeu a internet (mais de uma vez, inclusive). Quatro anos depois, em 2012, cheguei a fazer um post reconhecendo que esse cenário estava mudando, com indícios de que de fato era possível compreender a internet.

Três anos adiante, entretanto, retiro o que disse – o Judiciário brasileiro continua sem entender a internet.

A decisão recente (que chegou a ser posta em vigor por algumas horas) que bloquearia o Whatsapp no país por 48h é o exemplo mais emblemático e absurdo dessa falta de compreensão. Entendo a motivação para a decisão – a ferramenta se recusou a quebrar o sigilo de dados numa investigação criminal em andamento – mas a compensação parece desproporcional (bloquear o Whatsapp no Brasil inteiro, por 2 dias??? o que os usuários, que ficaram sem o serviço, têm a ver com o problema judicial???).

Além dessa questão específica, também tem a preocupação das operadoras com as chamadas de voz via dados (inicialmente, chegou-se a cogitar que o bloqueio seria por causa disso). Mas nesse caso é mais provável que a redução do uso do telefone como … ~telefone faça parte de uma tendência mais ampla que não tem absolutamente nada a ver com o Whatsapp. E, igual, nesse caso, não se trata apenas de prejuízo para as operadoras, uma vez que os usuários tendem a usar mais dados, e dados, no Brasil, é algo que ainda tem um custo muito alto.

De qualquer modo, é sempre interessante ver a reação da internet – que foi desde procurar ferramentas alternativas até reagir ao bloqueio com humor.

Sites de redes sociais têm até 24 horas para retirar do ar conteúdos ofensivos

Aos poucos, o judiciário brasileiro vai reunindo um conjunto de leis, decisões, jurisprudência, e outros, que demonstra um melhor entendimento da internet. Recentemente, foi noticiado que a comissão que discute mudanças no Código Penal aprovou a criação dos crimes de “bullying” e “stalking”, práticas que costumam ocorrer também pela internet. E agora o STJ anuncia uma decisão pela qual empresas responsáveis por sites de redes sociais (Google, Facebook, Twitter) devem retirar em até 24 horas mensagens publicadas em redes sociais após denúncia de alguma parte interessada.

Assim, se você se sentir ofendido por alguma postagem feita por outra pessoa no Twitter, por exemplo, e fizer uma denúncia pelo site, o Twitter terá até 24 horas para tirar essa mensagem do ar. Caso não o faça, conforme a decisão do STJ, o provedor deve “responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada”. A ideia é que o provedor retire do ar tão logo seja possível, e só depois faça uma análise quanto a se houve ou não o dano.

A decisão foi tomada no âmbito de um processo de uma internauta contra o Orkut, que levou 2 meses para retirar do ar um perfil ofensivo à autora da ação. Além da determinação de que os conteúdos sejam removidos em 24h, a Google Brasil também foi condenada a pagar uma indenização de 10 mil reais. (Não encontrei a decisão em si no site do STJ, estou me baseando na matéria da Folha – que agora limita a 20 acessos a notícias por mês, então tenha parcimônia ao clicar).

Outra decisão, de maio deste ano, já havia equiparado a relação do usuário com o site de redes sociais com uma relação de consumo, ainda que o serviço seja prestado de forma gratuita. Em termos práticos, isso implica na possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, geralmente mais benéfico para o elo mais fraco da relação, o consumidor.

Há dois anos, quando concluía o curso de Direito, tentei discutir um pouco a responsabilização de terceiros por comentários em blogs e no Orkut. Ainda tem muito por avançar, mas é interessante ver decisões que parecem entender a internet (se bem que 24h parece muito pouco tempo para tirar a ofensa do ar… 2 ou 3 dias pareceria mais razoável, embora eu não tenha nem ideia da quantidade de denúncias que os sites recebem por dia).

Direito de resposta no Twitter

Alguns dias antes das eleições, o TSE concedeu um direito de resposta inédito – não tanto pelo conteúdo (estava relacionado a questões eleitorais), mas sim pelo meio através do qual incidia. Rui Falcão, coordenador de comunicação da campanha da então candidata Dilma Rousseff teve de postar uma mensagem informando que o TSE considerou ofensiva as mensagens por ele divulgadas em 19 de outubro sobre a campanha de José Serra. Mais do que um direito de resposta concedido, o inédito da situação é que a decisão se referia a algo publicado no Twitter. E a resposta, também, deveria ser veiculada no Twitter.

O direito de resposta é um instituto jurídico previsto na legislação eleitoral. Incide em casos de violação a direitos emitidos por meios de comunicação diversos. As regras relativas ao direito de resposta na Internet foram estabelecidas pela Lei n. 12.034 de 2009. O artigo 57-D estabelece:

“É livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores – internet, assegurado o direito de resposta, nos termos das alíneas a, b e c do inciso IV do § 3o do art. 58 e do 58-A, e por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica.”

Rui Falcão teria tuitado, em 19 de outubro, dois tuítes para seus então 2.113 seguidores, “Cuidado com os telefonemas da turma do Serra. No meio das ligações, pode ter gente capturando seu nome para usar criminosamente…”, e “Eles podem clonar seu número, pode ser ligação de dentro dos presídios, trote, ameaça de sequestro e assim por diante. Identifique quem liga!”. Essas mensagens levaram a equipe da campanha de José Serra a entrar com uma representação junto ao TSE perseguindo o direito de resposta.

A decisão proferida pelo relator Henrique Neves na Representação n. 361895 trazia duas sugestões. A primeira seria responder em dois tuítes, a serem veiculados no perfil de Rui Falcão. Os dois tuítes foram escritos pela equipe da campanha de José Serra. A segunda seria publicar essa resposta, por tempo determinado, no espaço destinado à biografia do petista no microblog Twitter. A decisão já foi cumprida por Falcão, que tuitou “Justiça eleitoral puniu Rui Falcão com este direito de resposta por ofensas à campanha de Jose Serra vinculadas em seu twitter…” seguido de “…cabe esclarecer que a comunicação feita pela campanha de Serra agiu com lisura, de forma íntegra, respeitando todo os eleitores!”.

Não entrando no mérito da questão, o interessante do caráter processual do caso é o ineditismo de se ter reconhecido um direito de resposta a algo veiculado no Twitter. Isso traz indícios do papel que o microblog exerceu nas eleições, e de seu potencial enquanto meio de comunicação legítimo – seja ele considerado como de caráter interpessoal, de nicho ou massivo. Tão legítimo e importante que se teve de reconhecer juridicamente o direito de resposta a algo veiculado através dele.

Projeto de lei (pretende) regulamentar os blogs

Saiu ontem no jornal Diário Popular, de Pelotas, uma matéria sobre o projeto de lei 7.131/2010, de autoria do deputado federal Gerson Peres (PP-PA), sobre responsabilidade civil e penal em blogs. Dei uma rápida entrevista sobre o tema para o jornal, mas acho que seria interessante aproveitar este espaço para discutir um pouco mais o projeto.
A proposta do deputado traz pelo menos três pontos importantes para discussão: a obrigatoriedade de um cadastro nacional de blogueiros, gratuito e através do registro.br; a responsabilização do blogueiro no caso de comentários anônimos ofensivos em que não se consiga identificar os autores dos comentários; e a obrigatoriedade de que todo blog faça a moderação de seus comentários. O descumprimento dessas medidas, conforme prevê o projeto, poderia levar a uma multa de 2 a 10 mil reais.
A tentativa de imposição de um registro obrigatório, com nome, identidade e CPF, de certa forma é incompatível com a liberdade de expressão propiciada pelos blogs. Assim como haveria muitos que não se registrariam, também haveria outros tantos que buscariam estratégias para burlar o sistema, como vincular seus blogs a outros países, ou sei lá o quê. (Não podemos subestimar a criatividade dos blogueiros :P) Ainda que essa medida fosse implementada, ela não seria eficaz.
A questão dos comentários anônimos é um tanto espinhosa. Se por um lado pode-se dizer que o blogueiro assume o risco pelo conteúdo ao se permitir comentários anônimos, por outro não permiti-los fere a liberdade de expressão. Como o artigo 5º, inciso IV da Constituição Federal estabelece ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, na prática, a jurisprudência já vem reconhecendo a responsabilidade do dono do blog por comentários ofensivos anônimos nos quais não se consegue identificar o autor do comentário, mesmo que não haja ainda uma lei específica regulando essa questão. Ao menos foi o que constatei na minha monografia do Direito, sobre a responsabilidade civil de terceiros em comentários de blogs e em comunidades do Orkut. O terceiro, especialmente o anônimo, muitas vezes escapa impune, pela dificuldade em identificá-lo.
Já tentar obrigar todo blog a exercer moderação de comentários é um tanto complexo. É quase como impor censura prévia a um espaço que é tido como, em tese, democrático. Qualquer um pode criar um blog, ou expressar sua opinião em um comentário. Limitar essa liberdade chega a ser um contra-senso. Transformaria blogs em qualquer outra coisa que não um blog.
Dentre as medidas desse projeto de lei, a única a que tendo a concordar é com a responsabilização do blogueiro pelo comentário anônimo ofensivo, mas desde que antes sejam esgotadas todas as possibilidades de identificação do autor do comentário.
De qualquer modo, acho pouco provável que esse projeto vire lei, ao menos com a redação original. E, mesmo que vire, é pouco provávlel que seja eficaz. Tentar regular um espaço tradicionalmente auto-organizado com imposições de cima para baixo, sem que haja uma discussão nas bases, tem poucas chances de dar certo.

O terceiro

O terceiro é meu personagem favorito no mundo jurídico. Ele não é nem eu, nem você, mas outro, terceiro em relação a nós. O terceiro é aquele que sem querer se mete na relação estabelecida – seja por contrato, seja em decorrência da lei – entre o primeiro e o segundo. Num processo, há autor, réu, e terceiros. Num contrato, tem-se contratante, contratado, e terceiros. Num blog ou em qualquer texto escrito, há um autor, um leitor, e os terceiros – aqueles, além de você, que deixaram comentários, ou até mesmo aqueles que leram antes mas não deixaram rastro algum.
Há sempre uma competição no mundo jurídico. Dizem por aí que o terceiro quer sempre ser primeiro, ou segundo. Se você vende uma casa e depois descobre que ela não era sua, mas estava em nome de terceiro, o terceiro vira primeiro e você se torna o terceiro. Da mesma forma, se decide dar a palavra para o terceiro em algum processo ele pode vir a se tornar segundo – quiçá primeiro – junto ou no lugar do primeiro ou do segundo.
O terceiro é aquele que impele você a escrever cada vez mais em seu blog. O terceiro é o que indiretamente se beneficia de tudo, mesmo que não precise fazer qualquer coisa para que esse benefício o alcance – basta deixar agir o primeiro e o segundo.
A posição do terceiro é bastante cômoda. O problema é quando nos acostumamos a ser terceiros e deixamos de ser protagonistas de nossas próprias vidas…

Post relacionado: O terceiro de boa-fé

Data venia

Data venia é um termo jurídico absurdo usado nos mais variados contextos jurídicos – de artigos acadêmicos a peças processuais, de aulas de direito a acaloradas sustentações orais em plenário – o qual, apesar de parecer eloquente, não significa absolutamente nada.
Data venia, aliás, data maxima venia, data venia significa sim, alguma coisa. A expressão quer dizer algo como “com a devida licença”, e geralmente aparece antes de se passar a discordar de outrem. Data vem do verbo dar, em latim. Venia significa licença. E o maxima, ao ser acrescentado à expressão, pode servir para intensificá-la.
(Para quem procura uma definição mais séria, vale a pena conferir data venia na Forensepedia.)

Aplicações na vida prática:
– Você é uma pessoa legal, mas, data venia, quando abre a boca só fala asneira.
– Data venia, você não tem razão.
– Data venia, VOCÊ não tem razão.
– Data maxima venia, eu tenho razão sim.
– Data maxima venia, a razão continua comigo.
(repete ad infinitum)

Em tempo: data venia, dedico esta exordial aos eminentes amigos do Plurk.

Caso The Pirate Bay: culpados?

Image Hosted by ImageShack.usFoi divulgada hoje a sentença do caso The Pirate Bay (já comentei antes sobre ele aqui). Em pauta, uma disputa entre a IFPI (entidade que representa diversas gravadoras e produtoras do mundo inteiro) e os proprietários do site de compartilhamento de arquivos, por violação de direitos autorais. A sentença: 1 ano de prisão e multa de 30 milhões de coroas suecas (o equivalente a R$7,7 milhões, de acordo com a Folha Online).
O interessante no caso é o fato de o The Pirate Bay ser um site que não fornece os arquivos em si – trata-se de um sistema de busca de torrents que possibilita que as pessoas possam trocar partes de arquivos entre si, em uma rede peer-to-peer. O perigo da decisão é que ela abre precedentes (ao menos na Suécia, país em que foi proferida a decisão) para se poder processar, por exemplo, sites como o Google que, embora não hospedem conteúdos ilegais, fornecem mecanismo de busca para que esses conteúdos sejam encontrados.
A matéria do The Guardian sobre o caso traz o link para uma linha do tempo do The Pirate Bay, reproduzida abaixo:

Os condenados anunciaram que pretendem recorrer da decisão. Enquanto isso, há um aviso no site onde se lê: “Don’t worry – we’re from the internets. It’s going to be alright. :-)”

Forensepedia: a enciclopédia jurídica colaborativa

forensepedia Gustavo D’Andrea andava quietinho, quase sem se manifestar na blogosfera. Pois esta semana voltou com tudo: novo blog, e lançamento da Forensepédia, uma enciclopédia colaborativa em wiki, nos moldes da Wikipédia, que promete se tornar referência na esfera jurídica.
Da descrição na página inicial do site:

“Forensepédia é uma enciclopédia jurídica colaborativa. Todos podem usá-la e editá-la. Ela foi estruturada e lançada com a missão de contribuir para com o livre fluxo de conhecimento jurídico no Brasil e no mundo, valendo-se da colaboração em massa como a sua principal ferramenta. Acreditamos que esta enciclopédia representa uma resposta a dois fatos principais: a crescente demanda por conteúdo jurídico acessível e de qualidade; e a existência, em toda parte, de pessoas com muito conhecimento jurídico não difundido. Isto faz da Forensepédia um ambiente propício à criação colaborativa de conteúdo jurídico, sendo importante mencionar que este conteúdo está sob uma licença livre. Portanto, seja muito bem-vindo(a) e sinta-se à vontade para utilizar a Forensepédia!”

Entre, visite, e colabore.
Para quem não sabe, o Gustavo mantém ainda a Advogados Networking, uma rede social voltada para advogados.

Assunto paralelo: este blog conta agora também com um ‘endereço resumido’: http://gabrielazago.com. Particularmente, acho o endereço da Verbeat mais simpático. Mas o novo endereço fica mais fácil de memorizar. 🙂 (Falando em Verbeat, a gente fica sem acessar o condomínio por alguns dias, e quando vê já são vários vizinhos novos. E tem mais novidade por aí! Dê uma olhada na página inicial do condomínio e confira!)

60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

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(reproduzida daqui)
No dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 60 anos. Marcos temporais como este nos levam, inevitavelmente, a refletir sobre o quanto se avançou em matéria de direitos humanos, e o quanto ainda falta avançar.
Na data, Sam Cyrous, do blog Fênix ad eternum, promoveu a segunda edição da blogagem coletiva de direitos humanos. (Comentei sobre a do ano passado aqui). Para variar, mais uma vez não pude participar na data. Mas novamente a ação coletiva foi um sucesso e reuniu dezenas de blogs em torno de um objetivo comum: refletir sobre a temática de direitos humanos. (A lista completa de participantes pode ser conferida neste post.)
Blogagem coletiva - direitos humanos
Quando comecei a Faculdade de Direito, (ainda) acreditava no ideal de Justiça, e no quanto a igualdade de direitos poderia ser um caminho para a melhoria das condições de vida. Aos poucos, no entanto, esse sentimento foi se transformando em frustração, ao perceber que o curso se tratava mais de um espaço para nos ensinar como aplicar as leis que já existem, do que propriamente um ambiente para se refletir sobre as mesmas e propor mudanças.
Apesar da frustração, trabalhei por algum tempo em um projeto de extensão na área de educação em direitos humanos. O objetivo (meio utópico, mas possível) do projeto era fazer com que a temática de direitos humanos chegasse até professores da Educação Básica – por intermédio de simpósios e cursos – e, a partir disso, fosse multiplicada pelo professor a seus alunos. Tudo isso era feito com base no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, e com apoio do MEC.
Uma das temáticas abordadas no projeto (e que aliás, estranhamente, praticamente não é mecionada ao longo do curso de Direito) era a discussão quanto aos direitos fundamentais e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em especial com relação aos aspectos históricos. Nesse sentido, cabe lembrar que a Declaração foi promulgada logo após a Segunda Guerra Mundial (1948), num período em que o mundo encontrava-se profundamente abalado pelas atrocidades cometidas na guerra. Partindo desse contexto, a Declaração propunha uma lista ampla de direitos que deveriam ser o patamar mínimo assegurado a todo cidadão. Entretanto, atualmente, 60 anos depois, quantos de nós realmente temos acesso à educação? Quantos de nós temos acesso aos direitos políticos? Quantos realmente gozam de um meio ambiente saudável? Quantos de nós somos hoje efetivamente livres?
É inegável que a luta pelos direitos humanos avançou em todas as partes do mundo nesses últimos 60 anos. Mas também não dá para negar que ainda não chegamos ao fim dessa caminhada. Ainda há um bom trajeto por percorrer (nesse sentido, a charge do Angeli reproduzida no começo do post ilustra bem essa situação). E se cada um fizer a sua parte, ainda que mínima – como respeitando o próximo, ajudando a quem precisa – estaremos cada vez mais avançando rumo a um futuro melhor (ou, pelo menos mais digno).
Para encerrar, fica a dica do vídeo abaixo, do Human Rights Action Center (via GJol), para conhecer um pouco mais do conteúdo da Declaração:


Em tempo: estou finalmente em férias (da faculdade) e pretendo, aos poucos, tirar as teias de aranha deste blog.

Desaforamento

Não se trata exatamente da ação ou efeito de cometer um desaforo (ou é isso sim, mas não no sentido usual que se possa imaginar). O desaforamento é um instituto do Direito Processual Penal segundo o qual um julgamento do tribunal do júri (crimes dolosos contra a vida, como o homicídio) pode ser enviado para outro foro (outra cidade) em alguns casos previstos em lei – seria, então, o ato de tirar o processo de um foro e colocá-lo em outro (ou seja, desaforá-lo).
O desaforamento está previsto nos artigos 427 e 428 do Código de Processo Penal. As hipóteses previstas na lei são: interesse da ordem pública (o que, convenhamos, pode abarcar qualquer hipótese imaginável possível!), dúvida sobre a imparcialidade do júri, ou comprometimento da segurança pessoal do acusado. O foro de destino deve ser o da cidade mais próxima do local de onde o processo foi desaforado.
E como isso acontece na prática? Imagine um ilustre morador de uma pequena e pacata cidade do interior (uma pequena e pacata capital é que não iria ser) que por algum motivo qualquer tenha supostamente cometido um assassinato (ninguém é realmente culpado até o trânsito em julgado). Os moradores da cidadela, horrorizados, passam a publicamente repudiar o ato de seu (ex-)ilustre morador, tachando-o como um grande desaforo (esse sim, no sentido usual do termo). Instaura-se um júri para julgar tal habitante, mas, assim como a cidade toda, os jurados também, tomados pela espetacularização do julgamento, já possuem posicionamentos bem definidos contrários ao ato. Nesse caso, pode haver dúvidas sobre a imparcialidade do júri, o que justificaria o desaforamento – ora, se a cidade toda está contra o réu, tolhe-se-lhe qualquer possibilidade de defesa. Aí o processo pode ser remetido para outra comarca, onde o réu será julgado por um corpo de jurados que, com sorte, não estará tão afetado pela aura de revolta dos moradores da cidade de onde partiu o acusado.
Aplicação na vida prática:
– Você pediu aumento de mesada para seu pai, para poder sair mais vezes à noite, mas ele negou, sob o argumento de que meninas não devem sair tanto de casa. Como o posicionamento de seu pai pode ser um tanto viciado, pelo fato de ele ter sido criado em uma sociedade um tanto por demais machista, você pode exigir o desaforamento do pedido de aumento e remetê-lo a sua mãe, que talvez tenha melhores condições de julgar de forma isenta se você merece ou não tal aumento. O mero desaforamento não significa que você irá receber o aumento – apenas que outra(s) pessoa(s) em outro(s) contexto(s) irão julgá-lo.