Tirinha do Snoopy

Indo em busca de um produto midiático para fazer o trabalho de Semiótica (“aplicar a teoria de Barthes, Eco ou Peirce a um produto midiático qualquer”), acabei caindo sem querer na página de tirinhas em outros idiomas do site dos Peanuts (esqueci o nome do desenho em português… só lembro os personagens… Snoopy, Charlie Brown…). No site, fixei-me na primeira tira apresentada. Era uma cena do Charlie Brown e do Snoopy, numa poltrona. Com o texto em alemão.
Como meu conhecimento do alemão é, literalmente, o de alguém que faz o curso “por correspondência” (no caso, pelo site da Deutsche Welle), encarei durante alguns instantes o primeiro balãozinho, para tentar entender o que o personagem dizia — ou seja, comecei a aplicar a teoria do Umberto Eco, instintivamente. Ele diz que as coisas só são signos quando alguém as interpreta, colocando todo o peso da semiótica nas costas do intérprete. Então eu estava empenhada em fazer com que aquelas palavras virassem um signo, que elas significassem algo para mim. A primeira grande interpretação que fiz da tirinha foi perceber que se tratava de uma tirinha em alemão. Talvez se eu nunca tivesse tido contato com a língua eu falhasse em perceber o fato — mas mesmo assim o site me ajudaria a recordar, visto que acima da tira há uma legenda indicando de que idioma se trata 😛
Eco também diz que, ao interpretar, a gente faz inferências e abduções. A inferência seria captar o sentido óbvio das coisas, através dos sentidos. Aquilo que salta aos olhos. Já a abdução ocorreria sempre que tivéssemos que decidir por algo diante de uma regra prévia, ou inventar algo de novo. A abdução pode ser supercodificada, quando todos os elementos necessários para a interpretação já estão disponíveis (de cara, ao olhar a tirinha, percebi que o Snoopy estava dormindo no colo de seu dono, e o fato da tirinha ser em alemão não muda em nada essa situação — supõe-se que, na Alemanha, os cachorros também durmam no colo das pessoas :P). Mas também pode ocorrer uma abdução subcodificada, quando poderíamos entender do que se trata, mas falta-nos o contexto correto — imagine como se eu estivesse olhando a tirinha pela primeira vez, e não soubesse quem sejam Snoopy e Charlie Brown. Também não soubesse de que contexto a tirinha tinha sido extraída. Se num livro de protesto contra os animais, provavelmente eu poderia aduzir que o mocinho está prestes a estrangular o cão. Pelo fato de o menino estar falando com o rosto virado para a esquerda, poderia também crer tratar-se de um gesto de repúdio ao animal… No entanto, minhas experiências de infância (eu adorava o desenho do Snoopy) acusam que se trata de uma cena de afeto entre um dono e seu cão. Há também a possibilidade de se fazer abdução ex novo, ou seja, quando o intérprete cria, inventa algo a partir do que está diante de si, quando lhe falta o contexto e a regra. Eu poderia inventar uma série de diálogos para o menino e o cão. Como no caso de se a tirinha estivesse numa revista de repúdio aos animais, Charlie Brown poderia dizer: “Cachorros são malvados e merecem morrer”, e Snoopy responder “Oh, não, tende piedade de mim!” (considerando-se a hipótese de o cão ser como um daqueles toscos animais antropomorfizados de historinhas infantis bestas). Charlie Brown está com uma cara de preocupado. Poderia também pensar que ele está dizendo “Eu não sei cuidar de cachorros, alguém pode me ajudar?”, e o cachorro pensar “Que idiota!”… Enfim, há várias possibilidades 🙂
Mas há um fato que saltou-me aos olhos em seguida, assim que parti para a leitura dos balõezinhos… A palavra “telefon” encontra-se no meio da frase de Charlie Brown. Telefon deve ser o nosso telefone… (dedução feliz :D). Então há um telefone envolvido na história. E talvez o fato de o personagem estar olhando para a esquerda possa significar que ele está falando com alguém que se encontra fora da cena. Opa.. Dois dados novos: Há um terceiro indivíduo e um telefone envolvidos na história.
E então eu parti para um nível um tanto mais avançado da leitura da tira, e comecei a reconhecer algumas palavras do idioma alemão (minhas aulas virtuais não foram de todo vãs, afinal!)… Charlie Brown fala “ich” (eu) três vezes. Deve haver algo relacionado a ele, que envolva o telefone e o cachorro. Também percebi a presença dos verbos kommen (ir) e schläft (dormir). Antes de telefone há uma negação (nicht). Qualquer que seja o papel do telefone na história, ele está sendo negado. Ora, quem dorme é o cachorro. O verbo ir provavelmente refere-se ao telefone. Ir ao telefone? Ou não ir ao telefone? A negação de repente passou a fazer sentido! — Não ir ao telefone. E que tal estabelecer uma relação causal com a frase seguinte? Não ir ao telefone porque algo dorme. O cachorro está dormindo, logo, Charlie Brown não quer ir ao telefone porque Snoopy dorme. Uau. Para quem não sabia nada ao ver pela primeira vez o quadrinho, isso já é um grande avanço! 😀
Na segunda vez que passei os olhos pela frase, tentei deduzir novos significados de palavras. A primeira palavra da tira, wer, provavelmente, é quemSag deve ter algo a ver com o verbo sagen (dizer). Ist é o verbo ser. Quem – ser – dizer… Diga quem é? — Bom, deixemos essa frase para depois…
Na fala do cão (sim, ele também fala! — ou melhor, pensa — o mais legal no personagem do Snoopy é que o tempo todo ele tem consciência de sua condição de cachorro :P), consegui identificar a palavra tag (dia), repetida e separada pela partícula zu. E sua frase termina em reticências, o que demonstra não se tratar de um pensamento acabado (ou, sei lá, Schulz talvez tenha usado o recurso para demonstrar que o cão está em estado hipnótico de sono…).
Voltando novamente ao primeiro balão, notei um verbo novo: kann (poder). Na verdade, a segunda frase (após o ponto) começa com “Ich kann nicht”. Eu não posso! O que Charlie Brown não pode? Telefone! Ele não pode telefone. Telefonar? Opa. Mas tem o verbo ir. Ir ao telefone? Ele não pode ir ao telefone!
Enfim, resumo da ópera… quando eu estava talvez prestes a deduzir o significado global da história (para finalmente poder partir de uma abdução subcodificada, à primeira vista, para uma supercodificação futura da tira…)…. tchanrãn… Rolei a página e vi que logo abaixo encontrava-se a tradução
Então, o que Charlie Brown dizia era algo como “Quem quer que seja, diga que não posso atender o telefone, porque meu cachorro está dormindo no meu colo, e não quero incomodá-lo”. Então, sim… há alguém fora da tirinha. E sim, há uma relação causal entre o telefone e o cachorro!
A fala do cão talvez eu nunca fosse aduzir corretamente… É algo do tipo “A vida fica melhor a cada dia…”
P.S.: A versão da tirinha em português, disponível no site, na mesma página, logo abaixo, diz bem menos que a versão em alemão. Charlie Brown pronuncia apenas: “Diga que não posso atender o telefone porque meu cachorro está dormindo no meu colo!”. Observa-se uma considerável redução em termos de significação… Em alemão, o dono do Snoopy se preocupa também em não incomodá-lo… Isso quer dizer que os alemães são mais sociáveis? (Se a é b, e b é c, logo, a é c 😀 Viva o modus ponens!! \o/)
Ah, mas mesmo sabendo o texto da tirinha… cada um ainda pode interpretá-la a seu jeito. Para mim, o fato de Charlie Brown não querer se levantar demonstra o tanto que ele tem
de afeto por seu cão. Eu mesma me reconheceria no papel do menino se o cão em questão fosse a Lia (ou o Snoopy mesmo :P). Mas talvez quem não tenha uma relação tão íntima com cachorros falhe em perceber esse laço… E isso nos leva de volta para a idéia inicial do Umberto Eco, de que tudo o que significa só tem sentido em função de um intérprete…

No fim, depois de toda essa viagem, eu ainda não encontrei um elemento para a análise. Eu e a minha dupla (o trabalho é em dupla :P) ficamos de pensar em algo até sexta-feira. Alguém aí tem alguma dica de algo produzido pela mídia que possa ser analisado? 🙂

P.S.: Fui parar no site do Snoopy depois de ler o capítulo “O Mundo de Minduim”, na obra “Apocalípticos e Integrados“, de — adivinha quem! — Umberto Eco… =)

One thought on “Tirinha do Snoopy

  1. Adorei o trabalho de dedução.
    É incrivel o que podemos conseguir quando nossa atenção e concentração está totalmente em uma tarefa.
    Gostei muito texto.
    Parabéns
    Gilberto

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