Category Archives: direito

As primeiras súmulas vinculantes

Em maio começam a ser votadas as primeiras propostas de súmula vinculante no Supremo Tribunal Federal. A idéia das súmulas é a de consolidar entendimentos já pacificados, de modo a evitar ter de movimentar a última instância da máquina judiciária toda vez que se pretenda buscar proteger um direito que necessariamente terá uma decisão igual à que se dá em casos semelhantes.

As primeiras seis súmulas serão votadas no dia 2 de maio. Dentre as propostas em votação nesse dia, uma delas impõe a necessidade de observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa dos interessados em processos no âmbito do Tribunal de Contas da União.

É estranho haver necessidade de que se edite uma súmula para garantir que seja assim. O princípio do devido processo legal deveria ser aplicado sempre, em qualquer tipo de processo, de jurisdição judicial ou administrativa (este é o caso do TCU, que apesar de ter nome de Tribunal, faz parte do poder Executivo). Por esse princípio, deve ser assegurado às partes no processo o direito de que haja uma tramitação célere, com rito predeterminado, de modo a que seja assegurada a possibilidade de defesa (contraditório) e produção de todas as provas que forem possíveis (ampla defesa). Há outros princípios conexos, como o do juízo natural (o que impede que se designe um juiz, um tribunal ou uma lei posterior ao fato), o da proibição da litigância de má fé, a igualdade processual, entre outros.

Nada contra as súmulas vinculantes – elas realmente podem contribuir para desobstruir a pauta do judiciário. Mas será que decidir todos os casos de forma igual não tiraria a complexidade dos casos da vida? Se toda as propostas de súmula continuarem sendo meio óbvias como as seis primeiras, talvez não haverá nenhum problema.

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As fases da relação contratual e os contratos eletrônicos

Mais um produto da série “Posts longos, tediosos e jurídicos que nunca vão ser lidos”…

Os contratos eletrônicos são contratos atípicos¹, pois o modo como devem ser executados não é previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, a atipicidade não impede que os contratos dessa espécie passem pelas três fases da relação contratual e obedeçam aos princípios gerais dos contratos. A possibilidade de se criar contratos atípicos é prevista pelo art. 425 do Código Civil – a parte final do artigo faz a ressalva de que as normas gerais do Código devem ser seguidas também nesses contratos.

As três fases da relação contratual

No Direito Civil, a relação contratual é uma relação complexa que envolve três fases – a fase pré-contratual, a fase contratual e a fase pós-contratual (o nome das fases é meio óbvio demais… mais óbvio que isso só se elas se chamassem fase 1, fase 2 e fase 3 :P). Ao longo de todo o processo, vigoram princípios gerais de direito que vinculam as partes contratantes. O principal deles é a boa fé objetiva, um princípio que obriga aos contratantes cumprirem certos deveres anexos ao contrato, como o dever de informar, o dever de lealdade e o dever de sigilo. A boa fé objetiva (espécie de presunção geral de que o contrato será cumprido, prevista no artigo 422 do Código Civil) vigora durante as três fases da relação contratual.

Assim, a primeira fase é a fase pré-contratual. Nela, ocorrem as tratativas e a formação do vínculo contratual (a partir da convergência entre proposta e aceitação da oferta). Nas tratativas, ocorrem negociações preliminares a partir das quais os futuros contratantes analisam perspectivas de mercado e outras informações relevantes para formar seu convencimento de que é necessário contratar. Essa fase costuma ocorrer em contratos civis e mercantis, principalmente em contratos entre grandes corporações. Nas relações de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor, geralmente não há tratativas – pois predominam contratos de adesão (nos quais o fornecedor decide os detalhes e ao consumidor resta apenas a possibilidade de aderir ou não ao contrato, sem poder modificar seus termos).

A fase seguinte é a fase contratual propriamente dita. Nesta fase, há a conclusão do contrato (em juridiquês arcaico, concluir algo significa deixar pronto para produzir efeitos – e não necessariamente extinguir a coisa), seguida da execução. A execução do contrato consiste nos passos necessários para que ele produza seus efeitos, como entregar o dinheiro e receber o produto em troca numa relação padrão de compra e venda.

Por fim, há a fase pós-contratual, na qual ocorre a extinção do contrato (algo como conclusão no sentido padrão do dicionário). A extinção do contrato é considerada uma fase em si porque as obrigações inerentes ao contrato não se encerram com o fim do contrato. Há certos deveres que permanecem mesmo após o término da relação contratual, que decorrem da boa fé objetiva. Como exemplo, há o caso dos vícios redibitórios (palavra horrível que significa algo como os probleminhas que o produto adquirido trazia escondido e que só foram percebidos após alguns dias de uso – a matéria é regulada pelo artigo 441 do Código Civil), que obriga o fornecedor de um produto a efetuar a troca ou ressarcir o comprador.

Contratos eletrônicos

Uma relação contratual processada por meios eletrônicos (aqui, o exemplo se limitará às compras realizadas pela Internet, mais especificamente as feitas a partir da interface da Web, e mais especificamente às vendas realizadas por uma empresa a um comprador), embora não haja uma legislação específica (o contrato é atípico), também deve passar pelas três fases. Assim ocorre nas compras efetuadas em sites de vendas, como Submarino, Americanas e Shoptime (o Mercado Livre é um caso à parte porque as compras são efetuadas diretamente entre indivíduos, sendo que o site funciona apenas como um meio que possibilita o contato entre ávidos compradores em potencial e vendedores que nem sempre agem de boa fé – neste caso, varia conforme as intenções do vendedor, que pode perfeitamente estar agindo de má fé, embora isso seja ilegal – há a necessidade urgente de se fechar este parêntese antes que ele fique maior que o próprio parágrafo).

Nem sempre haverá uma fase pré-contratual nas compras pela Internet, pois, por se tratar de relação de consumo, os contratos costumam ser de adesão.

Os contratos eletrônicos costumam ser de execução diferida, ou seja, a execução se prolonga no tempo. Assim, o comprador paga no cartão, mas só vai receber o produto em sua casa alguns dias depois. Nos contratos de execução diferida (assim como nos de execução continuada, que é o que ocorre nas compras a prestação), pode haver a resolução (extinção, desistência, renegociação da dívida) do contrato por onerosidade excessiva. A onerosidade excessiva ocorre quando a prestação para uma das partes se torna muito onerosa (palavra bizarra para pesada, cara, em termos financeiros) em virtude de acontecimentos extraordinários ou imprevisíveis (art. 478 do Código Civil).

Algo peculiar ocorre quando a compra é feita de um país diferente, e isso pode gerar efeitos principalmente na fase pós-contratual. De acordo com o §2° do artigo 9° da Lei de Introdução ao Código Civil (nesse caso, o artigo existe realmente; mas note que eu poderia ter inventado uma lei qualquer, um artigo qualquer, e mesmo assim citar essa lei teria criado um efeito de verdade com relação ao que vou dizer a seguir – o juridiquês é divertido :P), “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. O proponente é aquele que emite a proposta (fase pré-contratual). Ora, no caso da página na Internet de uma empresa que vende produtos, o lugar que reside o proponente é o local onde essa empresa está constituída. Assim, se um brasileiro decidir comprar produtos de um site estrangeiro (como da Amazon.com, americana), a lei que regulará a relação será a lei do país do site estrangeiro. Se o contrato for mercantil ou civil, tanto a lei material quanto a processual deverão ser a do país estrangeiro. Se a relação for de consumo, tem-se a possibilidade de se aplicar a legislação material estrangeira mas com rito processual brasileiro. De qualquer modo, o efeito prático dessa regra é o de que, caso haja descumprimento do contrato (por exemplo, há pagamento mas o produto não chega, ou o produto chega, mas com defeito – vulgo “vício redibitório”), o juízo competente para julgar a ação estará situado fora do país, mesmo que a pessoa, na prática, nem sequer tenha precisado sair de casa para efetuar a compra.

À guisa de² uma conclusão³

Dado o exposto, percebe-se o quanto a relação contratual eletrônica é complexa, na medida em que, embora não haja leis específicas, ela deve obedecer aos procedimentos gerais comuns a todos os outros contratos. Também se percebe o quanto ainda não consegui aprender a matéria da prova de Civil III de terça-feira, porque tenho a leve suspeita de que quase tudo o que disse acima esteja errado. O que me reconforta é o fato de que ninguém lê minhas postagens jurídicas longas do começo ao fim 🙂

Notas
¹ No artigo 49 do CDC há uma rápida menção aos contratos à distância (mas como o Código de Defesa do Consumidor é de 1990, o artigo se refere à venda de porta em porta ou por telefone, e não a contratos mediados por computador).
² Ao escrever essas palavras, pergunto cá com meus botões: existe algo mais horrendo e bizarro do que isso para se utilizar como encerramento de uma postagem de blog?
³ Sim, conclusão aqui é usada no sentido banal do dia-a-dia (e não no senti
do jurídico-arcaico-rebuscado de algumas linhas acima).

Links relacionados
Código Civil
Código de Defesa do Consumidor

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Projetos de lei criativos

No Consultor Jurídico, uma enumeração em tom humorado do que nossos representantes andam propondo como lei lá em Brasília.
Não achei tão absurdas as proposições. Algumas até fazem sentido. Exemplos: feriado no Dia da Consciência Negra e detector de metais em ônibus.
A matéria também ressalta a atual popularidade das temáticas de crimes hediondos e redução da menoridade (ou maioridade?) penal. Por fim, também esclarece que a quantidade de projetos propostos não é levada em conta na avaliação do desempenho parlamentar.

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Achado pode ser roubado: os limites entre abandono e perda da coisa

Diz o ditado popular que “achado não é roubado”. Mas até que ponto a perda de uma coisa é capaz de transferir a posse para outra pessoa?

No Direito Civil brasileiro, a idéia de posse baseia-se numa noção de fato, e não de direito. Basta que exista a situação fática de posse para que ela seja reconhecida. A posse caracteriza-se pela presença de dois elementos: um elemento objetivo (corpus) e um elemento subjetivo (animus). O Código Civil de 2002 assim define o possuidor em seu art. 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”

A idéia de posse se contrapõe à de propriedade, esta sim uma relação de direito, instituída com base em um título judicial, e exercida em caráter exclusivo.

Embora as hipóteses de perda e abandono de uma coisa apareçam como causas de perda da posse, nem sempre o terceiro que encontra algo perdido tem o direito legítimo de se considerar possuidor do bem encontrado. O primeiro ponto a ser esclarecido é o fato de que alguém achar um bem não lhe dá propriedade no direito brasileiro, o que já é suficiente para derrubar o ditado popular. Desse modo, não se perde direito de propriedade pela perda da coisa. Perde-se a posse, que é relação de fato. Já o abandono faz perder também a propriedade. Se alguém achar algo, sem que a situação caracterize inequivocamente um abandono, a atitude correta a ser tomada é entregar a coisa à autoridade municipal, para que esta instaure um processo administrativo para buscar o efetivo proprietário, através da publicação de um edital informando as características do bem encontrado.

Perder algo significa não saber onde essa coisa está. Se a pessoa perdeu algo, mas ainda está procurando, nesse espaço de tempo em que procura não se tem ainda como perdida a coisa. Se alguém acha a coisa na rua enquanto o proprietário anterior ainda está procurando, tudo vai depender das circunstâncias do fato concreto. O proprietário ainda estava procurando pela coisa? Quanto tempo se passou desde a perda? O proprietário já tinha se dado conta de que havia perdido a coisa? Se ele parou de procurar, a coisa que era perdida (res desperdita) se torna res derelicta (coisa abandonada), mas ainda lhe resta a opção de entrar com ação reivindicatória, que discute propriedade (e não posse). Pode ainda tentar provar que o outro possuía de má fé a partir de uma ação possessória. Se o proprietário não parou de procurar, o bem permanece coisa perdida, e, por isso, subsiste para quem encontra a obrigação de restituir ao dono.

Já o abandono de algo (e não a simples perda) precisa ser provado. Para saber ao certo, o ideal seria poder penetrar na mente daquele que abandonou a coisa. Como isso não é possível, a diferença entre perda e abandono é percebida pelo contexto, pelas circunstâncias que envolvam o fato. Não há forma prescrita para o abandono. Pode haver a prática de atos que demonstrem que a coisa foi abandonada, como depositá-la em um lixo, ou deixá-la em uma área desabitada. A vontade manifesta (exteriorizada) de quem largou a coisa demonstra se foi perda ou abandono. O arrependimento não restaura a posse. Para o direito, vale a vontade humana demonstrada. Pode-se no máximo começar a ter a posse de novo.

Assim, perder alguma coisa não faz com que automaticamente a posse se transfira para quem encontrar a coisa. Além disso, a propriedade permanece (pelo menos até decorra o prazo de 5 anos – de acordo com o art. 1.261 do Código Civil, esse é o tempo que deve transcorrer para que alguém transforme a posse de coisa móvel em propriedade, mesmo que não tenha título judicial, ou que aja de má fé). No caso de abandono, começa a contar desde logo prazo para usucapião. A posse é perdida no momento de abandono da coisa.

Bonus track

Aplicação prática disso tudo no ambiente virtual: no Second Life, a propriedade privada é assegurada de tal forma que o abandono de um objeto, ou a perda de algo, não transfere a posse – é dever daquele que a encontrar, ou do proprietário do território onde a coisa foi perdida, devolver o item perdido ao inventário daquele que perdeu a coisa. O item perdido retorna automaticamente para a categoria “Lost and found” – mesmo que tenha sido abandonado 😛 Para transferir a posse de algo para alguém, é preciso realizar a tradição da coisa (entrega online, que requer aceitação por parte daquele que recebe). Mas se o item tiver sido criado por quem transfere a posse, o nome do criador permanecerá anexado à coisa (a propriedade intelectual é resguardada).

Já fiz o teste. Perdi sistematicamente várias coke cans em diversas partes do mundo virtual de SL. Todas foram devidamente devolvidas pelos respectivos proprietários dos terrenos. A última levou quase uma semana. Mas foi devolvida.

Até que ponto é insano pensar em fazer um TCC sobre posse e propriedade no Second Life?

(Fonte de inspiração: aula de Civil IV de hoje)

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Decisão incomum

A notícia é antiga. Mas vale a pena comentar. Em 2003, o juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, no Tocantins, emitiu uma decisão um tanto incomum. O objetivo era mandar soltar dois sujeitos indiciados pelo furto de duas melancias. Ele poderia se limitar a dizer que a soltura se justificava pelo irrisório valor da coisa furtada (princípio da bagatela), ou então que o direito penal não deveria interferir numa conduta praticada contra um bem jurídico de valor tão pequeno (princípio da intervenção mínima). Mas não. O juiz foi além. Alegou isso e muito mais. Tanto que sua decisão acabou adquirindo fama nos quatro cantos do país, inclusive sendo citada como fundamento para outras decisões para casos semelhantes.
O interessante é que o texto serve para demonstrar o quanto os textos jurídicos em geral costumam ser cheios de informação, mas vazios de sentido – escrevem-se grandes dissertações sobre um tema, defendendo uma idéia, quando, na verdade, o essencial poderia ser dito com menos palavras, de uma forma mais clara, como fez esse juiz…
Em 2006, o despacho do juiz teria entrado para o banco de dados da Escola Nacional de Magistratura.

Curiosidade inútil: a decisão costuma circular pela Internet na forma de e-mail, com a redação “atualizada” para os tempos de mensalão. No original consta um trecho sobre os “engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos”. Em 2003 ainda não existia a expressão mensalão – ao contrário da corrupção, que sempre existiu em nosso país.

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A máquina dos concursos públicos

A indústria dos concursos públicos é um setor que movimenta grandes somas de dinheiro a cada ano. Milhares de pessoas tentam a “sorte” em provas para as quais muitas vezes se fornece uma ou no máximo duas vagas sob a promessa de salário bom aliada à estabilidade do serviço público.

Essa máquina vende a ilusão de um emprego estável a 116 reais (preço da inscrição mais a apostila – sim, eu paguei pelos dois). Há também quem invista em cursos preparatórios para concursos (okay, confesso que fiz quatro aulas de lógica). O resultado é um investimento pesado para algo que no fundo não passa de uma verdadeira loteria (além de precisar saber tudo de tudo para passar, é preciso ter a sorte de estar diante das perguntas certas).

Fiz a prova para o TRF 4ª região hoje. Há uma vaga para técnico-administrativo para Pelotas. De cada 5 pessoas que transitavam pelos corredores do local de prova, 4 eram de rostos familiares provenientes da faculdade de Direito (colegas, conhecidos, amigos de bar). Ou seja, as chances de passar são mínimas.

Pelos meus cálculos, acertei pouco mais de 20 questões de conhecimentos específicos (de um total de 30 questões divididas entre português e matemática) e bem menos de 20 questões de conhecimentos gerais (de um total de 30 questões sobre noções básicas de legislação constitucional, administrativa, processual penal e processual cível). Errei boa parte das questões de português porque não consegui entender um dos textos da prova. Em compensação, a prova de matemática aparentava ser ridiculamente fácil. Apesar de tudo, o resultado não foi tão ruim. Eu não pretendia passar. Na verdade, não sei o que eu pretendia quando me inscrevi para o concurso. Fiz a inscrição em uma época em que fazia estágio voluntário na Justiça Federal. Ora, poder receber mais de 2 mil reais por mês para fazer o que eu fazia de graça era praticamente uma visão do paraíso. Mas trabalhar na área técnico-administrativa de uma repartição pública vai contra todos os meus objetivos de vida (terminar as faculdades, e continuar na vida acadêmica ad infinitum). Espero não precisar fazer concursos públicos para me dar bem na vida. Fazer concursos faz parte do meu plano D de vida.

Na dúvida, amanhã sai o gabarito. Em abril, sai o resultado final. Por um equívoco na hora da inscrição, meu nome vai acabar saindo na lista de classificação geral. Isso não é nada divertido. Em 2004, fiz o concurso para Oficial Escrevente. Até hoje a minha classificação nada digna pode ser consultada nas páginas do Google (algo como 8,9 mil, ou 9 mil e alguma coisa).

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Para desafogar o sistema

Com vistas a combater a lentidão do Judiciário brasileiro, duas medidas deverão entrar em vigor nos próximos dias. Uma é a súmula vinculante, uma idéia que já desde muito tempo vem sendo discutida no Brasil, mas que só agora foi aprovada. Por ela, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) se pronuncie sobre determinada matéria, a decisão passa a ter efeito vinculante, ou seja, todos os processos similares a partir de então terão automaticamente a mesma solução. A segunda medida é o mecanismo de repercussão geral. Por ele, se um ministro do STF entender que a um processo falte interesse social ou relevância, o magistrado tem o direito de nem sequer analisar o pedido. Essa medida pode ser útil na medida em que o Supremo se vê obrigado a se pronunciar acerca de todo e qualquer caso, desde que uma das partes alegue que a decisão em instância inferior fere os princípios constitucionais. Assim, casos absurdos conseguem chegar a mais alta instância jurídica do país, como a briga entre vizinhos de um condomínio contra a presença de uma cachorrinha Poodle.

Para os que acham que a complexidade dos casos da vida é superior ao conteúdo de meia dúzia de súmulas vinculantes, e para os que pensam que todos os casos são iguais, os dois grupos devem concordar que as medidas, pelo menos, contribuirão para desafogar o sistema.

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Nova atribuição do MPF

Já imaginou como seriam diferentes as coisas se os autores de novelas fossem encarregados de defender juridicamente os interesses do cidadão, ao passo que aos procuradores coubesse a tarefa de escrever novelas? Pois então, o Ministério Público Federal de São Paulo resolveu inverter os papéis e enviou um pedido ao diretor da novela Páginas da Vida solicitando a alteração de parte do roteiro antes que a novela termine, no dia 2 de março.

A idéia é alterar os capítulos para incluir cenas que mostrem que é dever dos pais levar crianças deficientes para escolas regulares – ao invés de se tratar de uma mera opção, como ficou subentendido a partir das primeiras cenas referentes ao tema veiculadas na novela. Os procuradores também pedem que a novela mostre que a recusa de uma escola comum em aceitar crianças com deficiência pode gerar responsabilização nas esferas cível, penal e administrativa.

Como alternativa, o pedido sugere que a emissora exiba por pelo menos três dias esclarecimentos ao final da novela (no lugar daquelas bizarras lamentações dos cidadãos comuns) esclarecendo que menores deficientes também possuem direito inalienável (os direitos humanos são inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis) de freqüentar escolas regulares.

O Consultor Jurídico ainda complementa a informação com uma leve tirada sarcástica: “Não consta das atribuições do Ministério Público reescrever o roteiro de novelas”.

O divertido da situação fica por conta da possibilidade de inverter papéis. Se coubesse ao Jaime Monjardim “dirigir” a redação de um parecer jurídico, e ao Manoel Carlos a tarefa de redigi-lo, com certeza teríamos um pedido cheio de “considerandos” capazes de fazer o pólo passivo da decisão debulhar-se em lágrimas. A emoção fluiria a todo vapor. Cada considerando seria feito por um cidadão diferente, relatando seu caso dramático de vida, o que resultaria em páginas e páginas de lamentações.

Talvez a participação da equipe de roteirização de uma novela no Judiciário fosse capaz de fazer atingir o ideal da linguagem jurídica acessível ao povo. E se o Judiciário tivesse participação mais ativa nos roteiros, as pessoas não teriam que engolir absurdos de atropelamentos jurídicos.

Mas, por enquanto, o melhor é deixar que os procuradores defendam os interesses do cidadão e os autores de novela entretenham a população. Em um mundo ideal, um não deveria interferir na esfera de atuação do outro. Mas como a gente não vive em um mundo ideal, é até mesmo possível que a novela tenha que se estender para além do dia 2 de março para cumprir com a determinação do MPF. Resta saber se a recomendação será cumprida.

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Legislação de efeito analgésico

Votar na comoção do momento não vai resolver o problema da criminalidade no país. Desde a morte do menino João Hélio, há uma semana no Rio de Janeiro, nove projetos ligados à área penal foram “desengavetados” no Senado. A maior parte deles versa sobre aspectos processuais penais. Apenas dois almejam alterar a legislação penal em si, e ambos no mesmo ponto, o que os torna excludentes entre si: um prevê a progressão de regime para crimes hediondos após o cumprimento de 1/3 da pena. O outro prevê progressão para o mesmo caso após 2/5 da pena. Ambos procuram se situar em um meio termo entre a total impossibilidade de progressão (prevista inicialmente na lei de crimes hediondos, mas aos poucos abandonada por total negação de ressocialização do condenado) e a progressão padrão do Código Penal, que permite ir do regime fechado ao semi-aberto após o cumprimento de 1/6 da pena.

O regime semi-aberto é a fase intermediária de cumprimento de uma pena privativa de liberdade. Nele, o preso tem a possibilidade de sair do presídio para trabalhar ou estudar durante o dia, mas tem a obrigação de voltar à noite e nos fins de semana. Em uma condenação hipotética a 30 anos de prisão, pelas atuais regras da execução penal, o preso por crime hediondo tem direito de ir do regime fechado ao semi-aberto após o cumprimento de 1/6 da pena, ou seja, após 5 anos. Pela primeira proposta de alteração da lei, a progressão se daria após 1/3 do cumprimento da pena, ou seja, após 10 anos. Pela segunda proposta, a progressão só se daria após 2/5 da pena, em 12 anos. Qualquer das alternativas parece mais branda que a total impossibilidade de progredir, mas mais rigorosa que a situação atual permitida.

Um outro projeto recém iniciado (e que portanto ainda terá muito caminho pela frente até que vire lei) foi suscitado diretamente pela morte do garoto. Trata-se de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) propondo a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos se os crimes cometidos forem hediondos ou equiparáveis a hediondos (como tortura e terrorismo).

O que deve ser observado é que qualquer tentativa de apressar a aprovação desses projetos de lei pode ser prejudicial. Criar leis como (pretensa) solução pontual a problemas específicos nem sempre se mostra uma boa solução a longo prazo. Entretanto, a edição de uma nova lei cria um efeito analgésico sobre a população, e ajuda a dissipar a sensação de impunidade, embora na prática tudo continue o mesmo. Mas de nada adiantará alterar a lei se os recursos estruturais necessários para aplicá-la não forem providenciados, como aumentar o número de juízes, contratar mais policiais e ampliar a capacidade carcerária do país. Do contrário, haverá cada vez mais gente apta a ir para um presídio convencional, e o excedente impune será percebido nas ruas – ou nas rebeliões de presídios superlotados.

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Redução da menoridade penal

A discussão sobre a redução da menoridade penal voltou a ocupar um papel de destaque na mídia após o caso do menino João, de 6 anos, que morreu ao ser arrastado por 7km em um carro no Rio, estando preso do lado de fora do automóvel pelo cinto de segurança.

Um dos responsáveis pelo crime é menor de idade. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, a punição do menor será de no máximo três anos (por medida sócio-educativa). Os demais envolvidos no caso podem ficar presos por até 30 anos (pena máxima permitida no Brasil). Será que é justo?

As soluções possíveis para o problema incluem, entre outras alternativas:

– A possibilidade de se cumprir três anos como medida sócio-educativa, e, assim que adquirir a maioridade penal, o menor ser transferido para um presídio e continuar o cumprimento da pena pelo delito – o que exigiria uma dosimetria de pena especial.

– A redução da menoridade penal (de 18 para 16 ou 14 anos).

– Dar a liberdade para que cada estado tenha a possibilidade de legislar sobre direito penal, de modo que possam escolher livremente a idade mínima para que se vá para a prisão convencional, mais ou menos como acontece nos EUA. Isso exigira mudanças na Constituição Federal.

A redução da menoridade penal é a solução mais simples. Entretanto, não será necessariamente a mais eficaz. Ter a possibilidade de colocar em uma cadeia simples menores de 18 anos não significa que a criminalidade irá reduzir.

O problema é que a redução da menoridade penal valeria para todos. Não é só para o caso em questão, e sim para todo e qualquer menor infrator que venha a cometer um delito. Aliás, como no Direito Penal brasileiro vigora o princípio de que não há pena sem prévia cominação legal, mesmo que a redução da menoridade penal fosse sancionada no Congresso Nacional hoje mesmo, em um processo legislativo em tempo recorde, o menor envolvido no caso do menino arrastado não poderá ser preso com base nessa lei, pois ao momento do cometimento do crime o menor de idade ainda era punível pelo ECA.

O fato de que isso valeria para todos torna ainda mais polêmica a questão, e agrava a dificuldade em se alterar a legislação penal. Mudar pelo êxtase do momento pode não ser muito apropriado. Voltar atrás pode ser bem mais difícil depois.

Mesmo assim, desde muito a divulgação de crimes bárbaros pela mídia tem contribuído para provocar alterações na legislação. Um exemplo recente é o que aconteceu com a lei de crimes hediondos (8.072/90). A lei foi editada após uma onda de seqüestros mediante extorsão (quando se exige dinheiro pelo resgate) ocorrida no Brasil no final da década de 80. A lei se tornou ainda mais conhecida após a morte da atriz Daniella Pérez, morta por outro ator que contracenava com ela em uma novela à época. A mãe da atriz era também autora da novela, e utilizou sua posição de destaque na mídia na ocasião para pressionar que a legislação fosse alterada de modo que o crime de homicídio qualificado fosse incluído no rol de crimes hediondos. Embora o culpado pelo assassinato da atriz não tenha podido ser condenado nesses moldes, a mudança na lei provocada pela mídia alterou o destino de todos aqueles que vieram a cometer o delito a partir de então. Outra alteração na mesma lei ocorreu após uma denúncia de falsificação de remédios feita pelo Jornal Nacional.

Enfim, é inegável o quanto a mídia contribuiu e vem contribuindo para mudanças na lei. A pergunta é: será o caso do garoto também capaz de modificar a legislação penal?

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